Blog

Ao mestre Ludovico Martino, com carinho

 

Ludovico Martino, meados dos anos 60

 

O que faz uma pessoa ser chamada de mestre por todos os que tiveram a chance de trabalhar com ela? O que faz com que sempre que ela é lembrada seja com reverência e carinho?

Nas nossas vidas profissionais cruzamos com poucas pessoas que nos marcam tão profundamente que tem a capacidade de influenciar a gente a ponto de nos fazer lembrar delas quase todos os dias por causa de algum ensinamento ou atitude. Eu conheci pouquíssimas pessoas assim, e uma delas foi sem dúvida o Ludovico Martino, conhecido por todos como Ludo. Ele é, infelizmente, um dos segredos mais bem guardados do design brasileiro.

Conheci o Ludovico em 1995 e tive contato com ele durante apenas um ano, período durante o qual trabalhei em seu escritório. Mas mesmo tendo convivido tão pouco com ele posso dizer que sua influência em meu trabalho foi enorme. E meu caso está longe de ser o único. Ludovico formou dezenas de profissionais ao longo dos anos que tiveram e continuam tendo um papel decisivo no design Brasileiro. Embora o seu nome tenha estado associado por mais de quarenta anos ao do amigo João Carlos Cauduro, de quem foi sócio no escritório Cauduro/Martino Arquitetos Associados, hoje ele é bem menos lembrado do que deveria ser.

O Ludo me encantou desde o primeiro dia em que o conheci. Seu jeito reservado e até tímido talvez não tenham ajudado ele a se tornar tão conhecido fora do escritório, mas quem teve contato com ele jamais esqueceu da sua personalidade doce, e do seu talento incrível. Acho que me identifiquei com o jeito dele ser pelo fato de também ser tímido e de ter sido uma criança extremamente introvertida. O sucesso dele era um sinal para mim de que um dia eu também poderia chegar onde ele tinha chegado.

Ludovico nasceu em 1933 e iniciou a carreira em 1951 no escritório do seu primo, o arquiteto Plinio Croce, antes de completar dezoito anos. 1951 foi também o ano da criação do IAC - o Instituto de Arte Contemporânea do Museu de Arte Moderna de São Paulo, criado por Lina Bo e Pietro Maria Bardi. O IAC pode ser considerado a primeira escola de design do Brasil. Ali foi adotada uma metodologia de ensino parecida com a da Bauhaus e, embora tenha durado apenas três anos, teve uma influência marcante na história do nosso design. Para ser aceito havia um “vestibular”, mas Ludovico contou a Ethel Leon que não precisou fazer o exame de admissão - foi mandado pelo primo Plínio Croce e entrou direto. A experiência do IAC durou apenas três anos. Com o término do curso, Ludovico decidiu estudar para entrar na Faculdade de Arquitetura da USP.

Foi em um curso de linguagem arquitetônica preparatório para o vestibular, que ocorria aos sábados, que ele conheceu aquele que viria a ser seu sócio e amigo por mais de cinquenta anos: João Carlos Cauduro. Acabaram entrando na FAU-USP em anos distintos - Ludovico em 1954 e Cauduro em 1955, mas mesmo estando em classes diferentes, a amizade se aprofundou durante o curso. Um gosto em comum que uniu João Carlos e Ludovico foi a música clássica. Cauduro me disse em uma conversa que durante os anos da faculdade eles gostavam muito de frequentar os concertos que ocorriam no Teatro Municipal. De tanto irem lá acabaram ficando amigos do porteiro e conseguiram por causa disso entrar de graça inúmeras vezes.

Durante a Faculdade, promoveram vários eventos. Quando algum assunto de interesse surgia, iam a consulados e requisitavam material referente a determinado artista para poderem fazer exposições e projeções de filmes. Foi assim que elaboraram uma exposição sobre arquitetura Japonesa e exibições das animações de Norman McLaren e dos filmes de Ingmar Bergman. Ao se formarem, Cauduro foi para a Italia com uma bolsa de estudos concedida pelo Ministério das Relacões Exteriores do governo italiano e Ludovico se uniu a alguns amigos da Faculdade para fazer um escritório de arquitetura.

Depois da volta de Cauduro, acabaram algum tempo depois se unindo para fazer um trabalho para uma exposição sobre a usina de Urubupungá, onde Cauduro ficou responsável pelo desenho industrial dos elementos expositivos e Ludovico pela parte gráfica. Foram também contratados como professores na FAAP e posteriormente na FAU-USP, onde Cauduro passou a lecionar desenho industrial e Ludovico programação visual.

O escritório se estabeleceu formalmente no segundo semestre de 1963. O primeiro grande projeto executado foi para o Grupo Industrial Villares. Depois dele vieram o Metrô, a TV Cultura, o Zoo de São Paulo, a Avenida Paulista e centenas de outros. Foi uma parceria que durou quase cinco décadas, até o falecimento de Ludovico em 2011.

Quando analisamos a vida de um designer, geralmente temos a tendência de olhar apenas para o seu trabalho. No caso do Ludovico, se fizermos isso veremos uma obra exemplar, com o desenvolvimento de alguns dos sistemas de identidade visual mais elegantes e completos que foram feitos nos últimos cinquenta anos. Mas uma parte muito importante da sua obra foi também a formação que ele deu para uma legião de designers formados no dia a dia do seu escritório. Com uma formação prática que não é dada nos cursos universitários, foi com ele e com o João Carlos Cauduro que muita gente descobriu o que é design. E essa pessoas abriram seus próprios escritórios e levaram com elas esse conhecimento valioso.

A lembrança unânime que todos que trabalharam com ele tem é a de uma pessoa extremamente gentil e educada, mas ao mesmo tempo obcecada pela qualidade. Os trabalhos eram feitos e refeitos infinitamente até que a solução final fosse perfeita. Naqueles tempos pré computador, um sistemal de identidade visual podia levar anos para ser totalmente implementado. Ele carregava uma lente de aumento no bolso e sempre que sua opinião era requisitada a lente era acionada. Inspecionava os trabalhos nos mínimos detalhes e era conhecido por sua precisão absoluta. Isso explica seu gosto por mecanismos complexos de relógios, caixas de música e instrumentos musicais. Um hobby levado muito a sério que cultivou durante toda a vida. Ao longo dos anos colecionou peças raríssimas, como um órgão de tubo desses que só se encontra em igrejas e um piano Broadwood (marca que depois se tornou a famosa Steinway & Sons) do século XIX, todo marchetado. Tinha em casa uma oficina completada, com tornos e ferramentas complexas, onde fazia a manutenção de sua coleção, inclusive dos relógios.

João Carlos Cauduro me contou que certa vez ele comprou uma caixa de música há muito desejada em Londres, e com medo de que ela fosse danificada durante a viagem para o Brasil, acabou comprando duas passagens aéreas e colocando a caixa de música ‘sentada’ ao seu lado no avião. Essa precisão de relojoeiro, cuidado e obsessão pelos mínimos detalhes pode ser notada em muitos dos seus trabalhos tanto de design gráfico como de desenho industrial.

Conversando com João Carlos Cauduro e tentando no mar de marcas desenvolvidas pelo escritório descobrir aquelas que tinham sido feitas principalmente pelo Ludovico, pude perceber algumas sutis diferenças no trabalho gráfico dos dois. Cauduro fazia marcas com soluções que buscavam criar sistemas de identidade que funcionassem nas mais diversas situações, como no caso de Villares, do Banespa, da Fiesp ou do Sesi. Já o Ludovico, embora também prezasse a criação de sistemas, fez muitos trabalhos em que o centro da identidade eram símbolos extremamente bem desenhados e elaborados, como por exemplo no caso da FAU, da Cultura Inglesa ou o que existia na antiga marca da Natura. No desenho industrial sua habilidade com peças e dobras se mostrava nos detalhes impecáveis dos sistemas de sinalização que ele desenvolveu. São peças que estão por aí até hoje, décadas depois, resistindo à ação do tempo.

A sua associação com João Carlos Cauduro foi provavelmente a mais longa e prolífica que já ocorreu no design brasileiro. Foram personalidades complementares que durante mais de quatro décadas produziram algumas das melhores coisas que já foram feitas no nosso país. Ele será lembrado sempre como um dos pioneiros do nosso design, mas também como o formador e professor de muitos dos profissionais que estão por aí.

Obrigado mestre.


Crédito foto:
'Design Total - cauduro/martino 1967/1977' - Celso Longo

Agradeço às seguintes pessoas, que me enviaram depoimentos sobre o Ludo:
Andrea Assami, Anna Martino (in memorian), Carlos Espósito, João Carlos Cauduro, Lara Penin, Luis Moraes, Luis Fernandes, Tully Lin e Vanessa Pasquini.

Bibliografia:
'Design Total - cauduro/martino 1967/1977' - Celso Longo
'IAC - Primeira Escola de Design do Brasil' - Ethel Leon.

Contribuiu também uma conversa que tive na tarde do dia 19 de Maio de 2014 com o João Carlos Cauduro em seu escritório.